Insistimos, resistimos e sobrevivemos

Antes de mais, queremos agradecer o simpático convite e o voto de confiança que o Teatro Nacional São João dá à Companhia Erva Daninha no sentido de elaborar uma proposta que relembra os jovens criadores do Grande Porto. Trata-se de uma tarefa, embora privilegiada, difícil. Ser porta-voz desta geração (des)enrascada, que também é a nossa, pode transportar doces ilusões próprias da autoanálise ou sabores mais amargos próprios das nossas vivências. A verdade que se foi impondo resultou do confronto entre o orgulho nos resultados artísticos e o desgaste causado pelas dificuldades nos processos criativos. Daí sentirmos que não seria justo celebrar apenas a nossa existência geracional mas também refletir sobre ela, apontando as suas fragilidades. Este prelúdio parece-nos o momento certo para uma contextualização social e política que poderá ter um travo mais amargo. Mas acima desta reflexão, acreditamos que a programação que propomos é uma feliz oportunidade de partilha, vivência e esperança.
 

Surge então Corrente Alterna – Mostra de Criações Incógnitas. Como uma corrente de energia cuja frequência oscila entre polos antagónicos. Um conjunto de companhias, de jovens e não tão jovens criadores das artes cénicas que ficaram presos a uma certa emergência. Estruturas com equipas reduzidas, incompletas e em tempo parcial, onde o dinheiro nem sempre é a moeda de troca. Coletivos que, não tendo como assegurar equipas fixas, nem sempre conseguem manter uma produção contínua. Profissionais especializados que entram num ciclo vicioso onde, uma vez que os postos de trabalho não estão assegurados, são obrigados a procurar outras formas de sustentação, perdendo o tempo justo de dedicação aos seus projetos.


Estas circunstâncias, que são aqui o cerne da questão, têm origem em características próprias da sociedade portuguesa em geral e do sector artístico em particular. O financiamento público às artes ainda é olhado de lado pela sociedade. Não entendendo que sem este financiamento – quer através de concursos de apoio às artes, quer através da aquisição de serviços – a produção, investigação e desenvolvimento artístico não são sustentáveis. Existe ainda como que uma certa incerteza quanto à legitimidade de considerar a criação artística uma profissão. Estamos também perante um modo de financiamento desgastado, sem visão, pouco especializado e que não arrisca. Os serviços que gerem os financiamentos públicos estão centralizados na capital, distanciados dos seus interlocutores locais. A avaliação para a obtenção de financiamento é feita com base no que se escreve sobre os projetos e não sobre os objetos artísticos em si mesmos. No caso particular de jovens companhias ou criadores, a situação agrava-se. Não existem concursos especializados, fazendo com que a comparação seja com estruturas com historiais mais longos e com uma maior capacidade de estabelecer parcerias e coproduções. Não se investe na procura de outras formas de financiamento, quer a nível local ou através da circulação dos espetáculos. O mercado privilegia a programação de projetos financiados, oferecendo condições inferiores a estruturas não-subsidiadas ou simplesmente não as incluindo. Não existe uma regulamentação das entidades públicas de programação, pelo que também estas vão variando de importância ao sabor da cor ou do momento político.


Por sua vez, nós nem sempre nos ajudamos. Afastamo-nos dos canais de reivindicação, queremos condições para fazer mas raramente contribuímos para uma voz de mudança. Ficamos calados, muitas vezes aceitamos piores condições de trabalho em troca de uma visibilidade efémera. Baixamos os valores, acreditando que vamos fazer mais e por vezes acabamos por nos render aos facilitismos. Somos desorganizados, baralhamo-nos com regras, legalidades e burocracias. Contribuímos, mesmo sem querer, para alimentar um sistema onde reina a desigualdade e a falta de condições laborais que nos permitam ter condições sociais dignas.


Certamente não o fazemos conscientes das consequências. Embarcámos nesta aventura com vista a um futuro que se mostrava bastante promissor. Capitais europeias da cultura, as melhores escolas, os cursos mais especializados, festivais, programas europeus, etc. Mas nem tudo o que reluz é ouro e, como sabemos, o que já era insuficiente está a ser empenhorado aos poucos. E nós, que embarcámos nesta viagem com destino a uma ilha paradisíaca cheia de financiamentos, de público e de sucessos, vamo-nos apercebendo da tempestuosa realidade. Mas não queremos abandonar o nosso barco, os nossos companheiros, as nossas viagens, as nossas aventuras, os nossos objetivos, as nossas conquistas. Vamos indo assim à deriva, na esperança de que uma mudança na corrente nos leve a bom porto.


Insistimos, resistimos e sobrevivemos. E adaptamo-nos, mantendo o espírito crítico, a curiosidade poética e a vontade de comunicar. Queremos ser escutados, observados e sentidos. Embora com limitações financeiras e com todas as constrições que daí surjam, mantemos a seriedade artística. Fazemos parte da evolução artística, somos uma parte do inevitável futuro. Estamos disponíveis para novas formas de vida, novas formas de conceber, financiar e apresentar arte e cultura. Precisamos apenas de ser vistos, valorizados e incluídos. Precisamos que olhem para os nossos defeitos e vejam as nossas dificuldades, e que nas nossas qualidades vejam o nosso potencial.


Corrente Alterna somos nós. Apresentamos as nossas criações incógnitas ao público e aos agentes culturais. Somos teatro, dança, circo, marionetas, performance. Produtores de uma energia desordenada de alta voltagem. Um momento, um encontro, um festejo, um protesto, uma reivindicação, uma descoberta. Um movimento electroestático de alta tensão que nos pode agarrar.




Julieta Guimarães
 

Companhia Erva Daninha